A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida Vinicius de Moraes
Esqueçam as crianças Carbono vaporizadas Esqueçam as meninas Cacos perfuradas Esqueçam as mulheres Mortas cremadas
Deita-se e sorri o Senhor da Guerra Orgulha-se das batalhas vencidas "Que valem as mortes, as feridas? Eis o preço de ver salva nossa terra!"
Em nome de Deus e da liberdade E da pátria, e de nada, derrota: Toma seu sadismo por patriota; Toma sua covardia por verdade
Esqueçam o cadáver Membros decepados Esqueçam as doutrinas Códigos e éticas Esqueçam os vencidos Como bostas fétidas Mas oh não se esqueçam
Da medelha da vitória Do herói que assassina Da tese, da História Que o vencedor ensina
Agacha e lamenta o refugiado Vira a imundície à cata de comida "Que vale, meu Deus, essa minha vida? Eis a sina do sem crime condenado!"
Sem roupa nem nome nem nada Sem culpa nem medalha nem sustento Toma do chão um verme por alimento Toma o susto de mais uma granada
Esqueçam a verdade Relato e memória Esqueçam a tristeza Escondida na glória Esqueçam os mártires Civis e inocentes Esqueçam os feridos Inválidos dependentes Esqueçam o químico A pele queimada Esqueçam a menina Que corria pelada
Provem mais uma vez Que todo o sangue derramado Derramado foi por nada.
Mariazinha estava inquietissíssima. Não apenas porque aquele fosse seu sexto aniversário ou porque em razão da festa sua mãe esquecera de lhe dar suas drogas de hiperatividade — não. Ocorria que naquele sábado, 13 de setembro de 2008, Mariazinha seria mãe.
Uma semana antes fora questionada sobre que presente lhe agradaria ganhar, ao que a menina respondeu quarenta e uma bonecas, uma irmã gêmea, mil reais, a Disneylândia e uma nuvem. O pai e a mãe se riram, como era bonitinha, e ele tentou explicar à filha que não podia comprar todas essas coisas, e que ela teria de escolher. A menina cuidou por um momento e respondeu, certa — certissíssima:
"Eu quero um cachorro.".
O pais se entreolharam, como era bonitinha, a mãe tentou explicar que um cão era muita responsabilidade, que teria que passear etc., quem sabe um hamster?
"Eu quero um cachorro.", impassível, "Ou melhor, uma cachorra.".
O pais se reentreolharam, como era bonitinha, o pai fez uma cara de que antes-isso-que-um-parque-ou-corpos-gasosos, que a mãe imitou.
"Está bem, filhinha, papaizinho vai comprar uma cachorrinha lindinha pra você, e você vai ser como uma mãezinha para ela!".
Mariazinha sorriu; mais uma vez tinha driblado os pais, como eram persuasíveis. Só mais tarde ocorreu ao pai a possibilidade de que a lista de pedidos absurdos talvez fosse um estratagema para diminuir o impacto do pedido real e torná-lo extremamente simples, a qual descartou, como era inocentezinha!, jamais pensaria coisas assim.
A menina começou a contar os dias. Na segunda-feira, a mãe contou ao pai que, na escola "Ela fez xixizinho nas calcinhas, acredita, amorzinho? Como está nervosinha!", ao que o pai assentiu.
Na terça-feira, Mariazinha contou para as colegas que ia ganhar um cachorro, ou melhor, cachorra, e que se chamaria Bolachona. Uma das meninas riu e disse que o nome era muito feio.
No dia seguinte, a professora ensinou que na Europa tinham ligado uma máquina que podia criar buracos negros — Mariazinha já os tinha visto em desenhos animados —, que poderiam destruir a Terra e matar todos nós. A menina que tinha rido no dia anterior faltou aula, porque "Alguém foi muito malvado e colocou alguma coisa na comida dela.", explicou a professora. Quando chegou em casa, os pais consolaram Mariazinha, dizendo que "A sua professora é muito burrinha, minha filhinha, nada de mal vai acontecer!"
Na quinta-feira, a mãe a deixou ficar em casa, porque "Falta muito pouquinho para a sua festinha, pode descansar!". Na sexta, idem.
Portanto, no sábado, Mariazinha estava inquieta, inquietissíssima. A celebração começou cedo, num cerimonial conhecido daquele bairro. O local fora decorado com motivos de um desenho animado e uma enorme faixa rosa exibia "Festinha da Mariazinha" escrito numa fonte tipográfica altamente clichê.
Depois que os convidados terminaram de chegar, lá para as onze da manhã, Mariazinha começou a abrir seus presentes com pressa, rasgando papéis e cartões furiosamente.
"Pronto, papai, terminei de abrir. Cadê?" e sorriu de orelha a orelha. O pai se riu, como era bonitinha, e foi buscar.
Vinha voltando, a menina quase tendo espasmos. A cadela era uma poodle pretinha e ainda filhote. Mariazinha estendeu os braços, quase chorando; o pai se aproximava, quase lá. Mas antes que a cachorra tocasse as mãos volantes da garota, ouviu-se um barulhão e uma ventania desgraçada levou o animal voando. Muito rápido, teto, cadeiras, mesas, pessoas, tudo etc. começaram a voar em direção ao céu, que escurecia. O pai segurou a filha com toda força que pôde, mas apenas tempo suficiente para vê-lo, enorme, poderoso, gravitacional: estava ali o buraco negro para quem quisesse contemplar. Depois,
ele e ela tam
´
bem f
Seca, débil, abatida, raquítica, Pele, osso, desfigura fodida Segue Amandinha, afoita e faminta, Tirando de sob a cama a comida, Seu voraz, incontrolável instinto: Come, devora, orgasma a papila
Degusta coa língua prazer negado, Júbilo que a caloria reclama, Felicidade que o espelho rouba, Contentamento que a balança afana
Mas, passado curtíssimo flagrante, Qual centelha que de queimada cessa, O devaneio e o riso, num instante, Se fazem pranto, se fazem promessa
De que aquela aventura proibida, Gustativa, obscena, pecaminosa, Jamais seria, jura, repetida.
É com vagar de ré que se levanta e, Tal como humílima escrava, que é Oferece à balança, ao espelho ‒ Senhores do engenho do corpo ‒, O sacrifício que já lhe é velho:
Força contra a goela dedos-ossos, Engasga e descarta, com bolos grossos De alimento, doses diárias de Seu sorriso, sua alma, sua vida.
A mulher entrou no carro outra vez, bateu com a mão na testa como quem acaba de lembrar qualquer coisa e saiu, de novo.
Andou depressa de volta à loja, aquela loja enorme. Entrou de cabeça baixa, como quem se esconde; desnecessário: certamente ninguém a observaria.
Espremeu-se por entre o povo, o estabelecimento lotado dos que deixaram o presente para a véspera. Andou um pouco por entre as prateleiras, ansiosa. Pegou qualquer coisinha pequena, só para disfarçar. Dirigiu-se apressada em direção aos caixas e meteu-se na maior das filas. Apreciou por um momento a distância a ser percorrida, deleitou-se com a espera enfadonha que teria, era certo.
A excitação era absurda, tamanha a lentidão com que se deslocava, tamanha a zanga dos que estavam atrás. Passados quinze minutos, meia-hora, ainda era enorme.
Tentava conter-se, permitiu-se apenas alguns sorrisinhos disfarçados. A intervalos regulares, moldava uma carranca e resmungava a lentidão, amaldiçoava o gerente, só para se misturar ao coro da multidão.
Passada uma hora, talvez, o calor já insuportável pareceu piorar. Alguém ali atrás disse que o aparelho de ar condicionado parara. Rugiram palavrões gerais. O suor fedia, a umidade somava-se à pressão dos corpos. Era demais; a mulher precisou dar uns pulinhos de satisfação, que não arranjou desculpa para camuflar; indiferentes, ninguém reparou.
O aroma denunciou um pum. Os mais próximos amarraram a cara, pediram uma gota de respeito. A mulher entrou em êxtase; esta, sem dúvida, estava sendo a melhor espera do dia.
À medida que se aproximava mais e mais do caixa, a agitação se moldava em ansiedade. Ela procurava ocultar seus tremores, rangeu um tanto os dentes. A mulher do caixa a chamou, ela fingiu uma surdez muito mal. Chamou outra vez, mais alto. As pessoas atrás já a empurravam, não era mais possível postergar. Deixou que passasse o produto na máquina, pagou no cartão e saiu, a cabeça baixa.
Abriu a porta do carro e entrou, jogou o produto de qualquer jeito no banco de trás, junto aos outros treze. Agarrou o volante com as duas mãos e tamborilou, tentando se convencer de uma calma que não tinha. Mirou a loja, fechou os olhos com força. “Só mais uma vez, só mais uma”, pensou. Olhou para os lados, bateu com a mão na testa como quem acaba de lembrar qualquer coisa e saiu, de novo.