sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Esqueçam

A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
Vinicius de Moraes


Esqueçam as crianças
Carbono vaporizadas
Esqueçam as meninas
Cacos perfuradas
Esqueçam as mulheres
Mortas cremadas

Deita-se e sorri o Senhor da Guerra
Orgulha-se das batalhas vencidas
"Que valem as mortes, as feridas?
Eis o preço de ver salva nossa terra!"

Em nome de Deus e da liberdade
E da pátria, e de nada, derrota:
Toma seu sadismo por patriota;
Toma sua covardia por verdade

Esqueçam o cadáver
Membros decepados
Esqueçam as doutrinas
Códigos e éticas
Esqueçam os vencidos
Como bostas fétidas
Mas oh não se esqueçam

Da medelha da vitória
Do herói que assassina
Da tese, da História
Que o vencedor ensina

Agacha e lamenta o refugiado
Vira a imundície à cata de comida
"Que vale, meu Deus, essa minha vida?
Eis a sina do sem crime condenado!"

Sem roupa nem nome nem nada
Sem culpa nem medalha nem sustento
Toma do chão um verme por alimento
Toma o susto de mais uma granada


Esqueçam a verdade
Relato e memória
Esqueçam a tristeza
Escondida na glória
Esqueçam os mártires
Civis e inocentes
Esqueçam os feridos
Inválidos dependentes
Esqueçam o químico
A pele queimada
Esqueçam a menina
Que corria pelada

Provem mais uma vez
Que todo o sangue derramado
Derramado foi por nada.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A Surpresa de Mariazinha

Mariazinha estava inquietissíssima. Não apenas porque aquele fosse seu sexto aniversário ou porque em razão da festa sua mãe esquecera de lhe dar suas drogas de hiperatividade — não. Ocorria que naquele sábado, 13 de setembro de 2008, Mariazinha seria mãe.

Uma semana antes fora questionada sobre que presente lhe agradaria ganhar, ao que a menina respondeu quarenta e uma bonecas, uma irmã gêmea, mil reais, a Disneylândia e uma nuvem. O pai e a mãe se riram, como era bonitinha, e ele tentou explicar à filha que não podia comprar todas essas coisas, e que ela teria de escolher. A menina cuidou por um momento e respondeu, certa — certissíssima:

"Eu quero um cachorro.".

O pais se entreolharam, como era bonitinha, a mãe tentou explicar que um cão era muita responsabilidade, que teria que passear etc., quem sabe um hamster?

"Eu quero um cachorro.", impassível, "Ou melhor, uma cachorra.".

O pais se reentreolharam, como era bonitinha, o pai fez uma cara de que antes-isso-que-um-parque-ou-corpos-gasosos, que a mãe imitou.

"Está bem, filhinha, papaizinho vai comprar uma cachorrinha lindinha pra você, e você vai ser como uma mãezinha para ela!".

Mariazinha sorriu; mais uma vez tinha driblado os pais, como eram persuasíveis. Só mais tarde ocorreu ao pai a possibilidade de que a lista de pedidos absurdos talvez fosse um estratagema para diminuir o impacto do pedido real e torná-lo extremamente simples, a qual descartou, como era inocentezinha!, jamais pensaria coisas assim.

A menina começou a contar os dias. Na segunda-feira, a mãe contou ao pai que, na escola "Ela fez xixizinho nas calcinhas, acredita, amorzinho? Como está nervosinha!", ao que o pai assentiu.

Na terça-feira, Mariazinha contou para as colegas que ia ganhar um cachorro, ou melhor, cachorra, e que se chamaria Bolachona. Uma das meninas riu e disse que o nome era muito feio.

No dia seguinte, a professora ensinou que na Europa tinham ligado uma máquina que podia criar buracos negros — Mariazinha já os tinha visto em desenhos animados —, que poderiam destruir a Terra e matar todos nós. A menina que tinha rido no dia anterior faltou aula, porque "Alguém foi muito malvado e colocou alguma coisa na comida dela.", explicou a professora. Quando chegou em casa, os pais consolaram Mariazinha, dizendo que "A sua professora é muito burrinha, minha filhinha, nada de mal vai acontecer!"

Na quinta-feira, a mãe a deixou ficar em casa, porque "Falta muito pouquinho para a sua festinha, pode descansar!". Na sexta, idem.

Portanto, no sábado, Mariazinha estava inquieta, inquietissíssima. A celebração começou cedo, num cerimonial conhecido daquele bairro. O local fora decorado com motivos de um desenho animado e uma enorme faixa rosa exibia "Festinha da Mariazinha" escrito numa fonte tipográfica altamente clichê.

Depois que os convidados terminaram de chegar, lá para as onze da manhã, Mariazinha começou a abrir seus presentes com pressa, rasgando papéis e cartões furiosamente.

"Pronto, papai, terminei de abrir. Cadê?" e sorriu de orelha a orelha. O pai se riu, como era bonitinha, e foi buscar.

Vinha voltando, a menina quase tendo espasmos. A cadela era uma poodle pretinha e ainda filhote. Mariazinha estendeu os braços, quase chorando; o pai se aproximava, quase lá. Mas antes que a cachorra tocasse as mãos volantes da garota, ouviu-se um barulhão e uma ventania desgraçada levou o animal voando. Muito rápido, teto, cadeiras, mesas, pessoas, tudo etc. começaram a voar em direção ao céu, que escurecia. O pai segurou a filha com toda força que pôde, mas apenas tempo suficiente para vê-lo, enorme, poderoso, gravitacional: estava ali o buraco negro para quem quisesse contemplar. Depois,
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sexta-feira, 13 de junho de 2008

Amandinha Vomita

Qual escravo obediente padece;

Seca, débil, abatida, raquítica,
Pele, osso, desfigura fodida
Segue Amandinha, afoita e faminta,
Tirando de sob a cama a comida,
Seu voraz, incontrolável instinto:
Come, devora, orgasma a papila

Degusta coa língua prazer negado,
Júbilo que a caloria reclama,
Felicidade que o espelho rouba,
Contentamento que a balança afana

Mas, passado curtíssimo flagrante,
Qual centelha que de queimada cessa,
O devaneio e o riso, num instante,
Se fazem pranto, se fazem promessa

De que aquela aventura proibida,
Gustativa, obscena, pecaminosa,
Jamais seria, jura, repetida.

É com vagar de ré que se levanta e,
Tal como humílima escrava, que é
Oferece à balança, ao espelho
‒ Senhores do engenho do corpo ‒,
O sacrifício que já lhe é velho:

Força contra a goela dedos-ossos,
Engasga e descarta, com bolos grossos
De alimento, doses diárias de
Seu sorriso, sua alma, sua vida.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Fila

A mulher entrou no carro outra vez, bateu com a mão na testa como quem acaba de lembrar qualquer coisa e saiu, de novo.

Andou depressa de volta à loja, aquela loja enorme. Entrou de cabeça baixa, como quem se esconde; desnecessário: certamente ninguém a observaria.

Espremeu-se por entre o povo, o estabelecimento lotado dos que deixaram o presente para a véspera. Andou um pouco por entre as prateleiras, ansiosa. Pegou qualquer coisinha pequena, só para disfarçar. Dirigiu-se apressada em direção aos caixas e meteu-se na maior das filas. Apreciou por um momento a distância a ser percorrida, deleitou-se com a espera enfadonha que teria, era certo.

A excitação era absurda, tamanha a lentidão com que se deslocava, tamanha a zanga dos que estavam atrás. Passados quinze minutos, meia-hora, ainda era enorme.

Tentava conter-se, permitiu-se apenas alguns sorrisinhos disfarçados. A intervalos regulares, moldava uma carranca e resmungava a lentidão, amaldiçoava o gerente, só para se misturar ao coro da multidão.

Passada uma hora, talvez, o calor já insuportável pareceu piorar. Alguém ali atrás disse que o aparelho de ar condicionado parara. Rugiram palavrões gerais. O suor fedia, a umidade somava-se à pressão dos corpos. Era demais; a mulher precisou dar uns pulinhos de satisfação, que não arranjou desculpa para camuflar; indiferentes, ninguém reparou.

O aroma denunciou um pum. Os mais próximos amarraram a cara, pediram uma gota de respeito. A mulher entrou em êxtase; esta, sem dúvida, estava sendo a melhor espera do dia.

À medida que se aproximava mais e mais do caixa, a agitação se moldava em ansiedade. Ela procurava ocultar seus tremores, rangeu um tanto os dentes. A mulher do caixa a chamou, ela fingiu uma surdez muito mal. Chamou outra vez, mais alto. As pessoas atrás já a empurravam, não era mais possível postergar. Deixou que passasse o produto na máquina, pagou no cartão e saiu, a cabeça baixa.

Abriu a porta do carro e entrou, jogou o produto de qualquer jeito no banco de trás, junto aos outros treze. Agarrou o volante com as duas mãos e tamborilou, tentando se convencer de uma calma que não tinha. Mirou a loja, fechou os olhos com força. “Só mais uma vez, só mais uma”, pensou. Olhou para os lados, bateu com a mão na testa como quem acaba de lembrar qualquer coisa e saiu, de novo.

Informação

Sabia que